quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Memória de Um Simples Dia

A porta ABRIU...




Pelo som e balançar da porta, seguido pelo arrastar-gemer da soleira no chão de modo vigoroso e vibrante... Já sei de quem se trata. 
Pena que está tudo turvo demais e agora já não mais posso vê-lo, mas tenho certeza que é ele. 


Eu sei que tudo está perdido mesmo, contudo tenho uma chance de ser honrado. Minha presença pode assim, então, ser notada. 


Os passos firmes... Percebo uma silhueta. Esse jeito de andar... Pé-pós-pé. Essa ginga quase imperceptível de quem não se enquadra nos padrões d’aqui. A maneira brusca de jogar em cima do assento acolchoado essa bolsa betume que carrega nas costas, onde já reside um amontoado de sobrepeles humanas de cores que variam do azul ao preto – que, já percebi, usa mais que as outras cores –. Já o ouvi antes. 


Conversando aqui na frente. É diferente do que ele o é aqui dentro. Nessa minha morada de toda vida. Feliz, jocoso, brincalhão. Ouvinte, ponderado, aconselhador. Tolerante, sorridente, apaziguador. 
Ele vai me perceber. Ele é bom. Tem boa alma. Tem bom coração. 


Estou no vão. Perto da caixa branca que esfria quando ele a abre. 


Parte que fica na ligação entre o lugar que ele recebe os amigos, senta para comer e fica chutando e socando o ar feito um louco. 
Antes do lugar onde ele passa muito tempo submergindo numa torrente de água que cai de um tronco enfiado na parede – e que mania de pular e uivar feito um maluco quando está naquela tortura! 
Onde dá acesso ao ambiente em que ele passa mais tempo com a caixa que solta sons maravilhosos quando ele a coça e onde ele descansa. Onde se desfaz das peles de mentira e fica normal pra sua raça... Onde deixa aquela outra caixa que brilha cuidando do seu sono. 


Lá vem ele! Tão perto... Tão perto... 
O primeiro pé sobe no batente. O segundo pé vem e... Tudo escuro. (...) 


A sombra me cobriu tão rápido. Custo a acreditar que passou por cima de mim e não me viu. 


Minha vida tão solitária se resume a ser ignorado até na pós-vida. Se ainda estivesse vivo morreria de dor. Meu coração pararia. 
Sei que meu objetivo de subsistência é me infiltrar e passar despercebido, mas eu não aguentava mais tanto. 
Tudo rodando. Um redemoinho de náuseas. 


Agora... Revejo todas as vezes que o via de cima... Entrando e correndo. Sempre corria! Principalmente quando tinha certeza que ninguém o via. 
E saltava quando o chão desnivelava para cima. Sempre com movimentos absolutos. Parecia querer voar. 
Eu sempre o acompanhava de cima... Entre os caibros e ripas de madeira lá estava eu. Fazendo o mesmo percurso que ele.


Quando o via chorar ficava tentando saber que fome era aquela que não passava... 
Quando o via sorrir também tentava entender o que ele tinha comido que o havia deixado 
tão bem. 


Nos últimos dias percebi que tínhamos algo muito em comum...: Estávamos sós. 


Meu coração, assim como o dele, já não era mais o mesmo. 
Nunca consegui fazer como ele e levar minha patinha ao peito pra comprimir o bendito no seu devido lugar... 


Mas achei que sentia a mesma coisa. 


Perguntei-me porque o cão, que deveria ser seu melhor amigo, não o tratava com tanto carinho... 
Também fiquei pesando o porquê do gato, aquele maldito assassino de minha espécie, a quem ele cuidou e deu alimento quando perdeu a mãe-gata simplesmente o abandonou... 


Entendi que como eu não conseguia dar forma ao “estar só” que eu sentia, tomei pra mim 1 centésimo da solidão que ele sentia. 


Meu coração explodiu. Foi isso. 
Justamente quando eu cruzava o vão que levava pra o quarto. No meio do corredor. 
E sem forças tombei do alto de uma imensidão. 


Agora, que morri, fui ignorado até por quem tanto idolatrei. 
Acho que é o vazio que mereço. Deveria ter ido com os outros. Deveria ter sobrevivido. Viver doeu. 


O foco se vai aos poucos. As margens escurecem primeiro. Eu bem que gostaria que a dor sessasse de uma vez, mas não consigo fechar os olhos. (...) 


Como você foi morrer aqui? – Algo me puxa de volta pra baixo. – O gato foi embora... E mãe não usa venenos há tempos. 


Minha alma esquenta. Como pude pensar que ele não me perceberia? 


Putz... Se eu contasse pra Dani que encontrei você aqui ela morreria de medo e nojo. – Ele ri feliz e depois pensativo o sorriso se desfaz devagar. - Morreu de fome? De tristeza, né? Acho que eu contaminei você.


Bem... Agora vou ter que te jogar fora e lavar aqui! Putz... Tou conversando com um cadáver... E nem é humano”. 


Ele falou diretamente comigo! Por um vislumbre o vi completamente. 
E isso foi o suficiente. 
Agora me vou. Nem triste, nem feliz: satisfeito. 




















*Uma homenagem ao ratinho que encontrei morto no corredor de acesso sala-cozinha da minha casa.

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